sábado, outubro 07, 2006

Veja - O fenômeno Alckmin

O tucano dispara na reta final, conquista 40 milhões de votos e chega ao segundo turno com chances de vitória

Ao acordar no domingo da votação de primeiro turno, o candidato tucano à Presidência da República, Geraldo Alckmin, tinha diante de si uma desvantagem nas pesquisas de 12 pontos em relação ao seu adversário, imensa probabilidade de sofrer uma derrota acachapante e – em caso de confirmação dessa hipótese – a ameaça de ter o futuro político reduzido a pouco mais do que pó dentro do seu partido, o PSDB. Ao deitar-se naquela noite, porém, o tucano viu no espelho uma imagem que era bem diferente. Alckmin terminou o dia refestelado sobre uma montanha de 40 milhões de votos, com vaga garantida no segundo turno e status de fenômeno eleitoral: passou a ocupar o segundo lugar no ranking dos candidatos mais bem votados, em números absolutos, no primeiro turno de uma eleição presidencial. O tucano não só superou em 20 milhões o número de votos obtidos em 2002 por seu colega de partido José Serra, como derrotou Lula em nada menos do que dez estados brasileiros, além do Distrito Federal. Em 2002, Serra venceu o petista apenas em Alagoas.

Na largada da segunda fase, uma pesquisa Datafolha, divulgada na sexta-feira, mostra que a distância entre Alckmin e Lula no segundo turno pouco mudou em relação ao último levantamento (veja quadro abaixo). Uma confluência de fatores explica o vôo alto do tucano. Sua candidatura vinha experimentando um crescimento lento, mas robusto, havia alguns meses, graças a uma campanha que, se não primou pela empatia, enfatizou a necessidade de uma agenda positiva para o Brasil. Com a eclosão do dossiêgate e, em grau menor, as demonstrações de arrogância de Lula, cuja condição de favorito o fez fugir dos debates televisivos, esse crescimento ganhou, pouco antes da votação, uma velocidade vertiginosa, não captada pelas pesquisas. No entanto, é consenso entre os especialistas que, no caso do escândalo do dossiê, ele só adquiriu alta combustão porque o PT e Lula já haviam levado a proporções épicas a corrupção governamental. Se não fossem o mensalão, os dólares na cueca, o caixa dois, o valerioduto e o escândalo do caseiro, para ficar apenas nas histórias mais marcantes, a tentativa de compra de documentos anti-PSDB por parte de petistas certamente teria tido menos impacto. "O dossiê serviu, principalmente, para ressuscitar no eleitorado a lembrança de todas as lambanças protagonizadas pelo PT", diz o cientista político Rubens Figueiredo.

Além de fruto das iniciativas "não republicanas" do governo Lula – e da repercussão delas junto ao eleitorado mais bem informado –, o mau resultado obtido pelo PT nas urnas deve-se às promessas que Lula deixou de cumprir nos seus quatro anos de mandato. A principal delas, evidentemente, foi o alardeado "espetáculo do crescimento". O aumento do produto interno bruto brasileiro no ano passado – pífios 2,3% – só não foi o pior da América Latina porque existe um inferno chamado Haiti. Já Alckmin pode gabar-se do contrário. Durante sua gestão à frente do governo paulista, o crescimento de São Paulo chegou a superar em quase 3 pontos a média nacional. Os 12 milhões de votos que o tucano obteve agora no estado mostram uma bela aprovação. Voltando aos aspectos "não-republicanos", também ajudou a inflar seus votos paulistas o fato de o escândalo do dossiê ter envolvido, por diferentes motivos, os dois candidatos ao governo local – José Serra, alvo do dossiê, e o petista Aloizio Mercadante, um dos potenciais beneficiários da maracutaia. "Isso certamente aumentou o impacto do escândalo em São Paulo", afirma a cientista política Lucia Hippolito. Uma das provas da magnitude da onda anti-PT gerada pelo episódio no estado foi a inesperada votação de candidatos como o pefelista Guilherme Afif Domingos, da coligação tucana. Afif Domingos ficou a apenas 4 pontos porcentuais do petista ex-arrasa-quarteirão Eduardo Suplicy, que todas as pesquisas diziam estar 20 pontos à frente do pefelista.

O peso de São Paulo numa eleição presidencial é avassalador. Para que se tenha uma idéia dele, basta tomar um exemplo: em Roraima, Alckmin bateu Lula por uma diferença de 33 pontos porcentuais – o que, em números absolutos, significa uma diferença de 63.000 votos. Em São Paulo, a vantagem do tucano sobre o petista foi de 17 pontos, praticamente a metade da registrada em Roraima. Ocorre que, em números absolutos, isso representa em São Paulo uma diferença de 3,8 milhões de votos. Desde a vitória de Juscelino Kubitschek, em 1955, nenhum candidato a presidente conseguiu ser eleito sem ter maioria em São Paulo. Até o próximo dia 29, portanto, o estado será a principal arena da disputa entre tucanos e petistas. Os últimos reconhecem que não conseguirão aumentar o já impressionante índice de Lula no Nordeste – e, no Rio e em Minas, trata-se de cuidar para que as lideranças políticas hoje engajadas na campanha de Alckmin não revertam os bons resultados obtidos pelo presidente. Resta aos petistas, portanto, atacar Alckmin em seu próprio território. Da parte dos tucanos, defender sua cidadela é a prioridade número 1. A estratégia do PSDB em São Paulo é manter os 12 milhões de votos em Alckmin e conquistar no mínimo mais 500.000 – número que representa a diferença entre a votação de Alckmin para presidente e a de José Serra para governador. Além disso, o comando da campanha tucana mirará firme em mais dois alvos: Minas e Rio, segundo e terceiro maiores colégios eleitorais brasileiros. Por fim, no que se refere ao Nordeste, onde Alckmin teve desempenho medíocre, não há muito que fazer. A esperança do PSDB é que os candidatos a governador que disputam o segundo turno das eleições demonstrem por Alckmin todo o empenho que não exibiram na primeira fase da campanha. No primeiro turno, a maior parte dos aliados dos tucanos no Nordeste não vinculou a campanha nacional à estadual, por receio de contrariar um eleitorado majoritariamente favorável ao presidente Lula. Agora, a situação se inverteu. "Os candidatos coligados ao PSDB que enfrentarão o segundo turno dependem de Alckmin para contrabalançar o apoio que Lula dará a seus adversários", explica o marqueteiro Marcelo Teixeira.

O ótimo desempenho de Alckmin no primeiro turno mudou os ânimos de seus pares no PSDB. O governador de Minas, Aécio Neves, que passou os últimos meses se defendendo das críticas de que não fazia mais do que o mínimo obrigatório para ajudar Alckmin (e, mesmo assim, conseguiu uma surpreendente votação para ele no estado), dá demonstrações de que entrou para valer na campanha. Na quarta-feira, Aécio desmarcou todos os seus compromissos para voar de Minas a São Paulo, a fim de encontrar-se com Alckmin e posar com ele para uma foto – que tinha como único objetivo ajudar a diminuir o impacto negativo causado pelo encontro do ex-governador de São Paulo com o ex-governador do Rio Anthony Garotinho (PMDB), e sua mulher, Rosinha. Um dia antes, Alckmin havia selado uma aliança com o peemedebista – num episódio que se revelou um desastre pela forma como foi encaminhado. Ao absorver o peemedebista mal-afamado na campanha, na esperança de avançar eleitoralmente no interior do Rio, Alckmin deixou-se fotografar a seu lado. O deslize, amplificado pelo prefeito do Rio, Cesar Maia, criou uma crise entre os aliados no Rio de Janeiro e mostrou que o tucano, se já revelou habilidade em administrar apoios dentro do PSDB, ao derrotar Serra na indicação para o candidato do partido à Presidência, ainda tem muito que aprender no que diz respeito à administração de alianças fora do ninho tucano. Serra, por seu turno, que compartilha com Aécio o desejo de disputar a Presidência da República em 2010, também prometeu publicamente empenho na campanha de Alckmin. Mas pelo menos uma ação sua denota ambigüidade. Eleito governador, um de seus primeiros gestos poderá vir a macular a ficha de administrador público do candidato tucano.

Alckmin, dizem pessoas próximas a ele, é homem de poucos amigos e decisões solitárias. Deu pistas disso ao tomar sozinho a decisão de dar ao ex-governador Garotinho o privilégio de ser o primeiro político a aparecer a seu lado depois da vitória no segundo turno, sem que nenhum dos caciques da campanha tenha sido consultado sobre a conveniência da decisão. Em relação a assuntos que julga sensíveis, recorre a um restrito grupo de colaboradores, em conversas que acontecem sempre individualmente, já que ele detesta reuniões. Nos últimos meses, em toda a estrutura de comando da campanha só duas pessoas gozaram de sua absoluta confiança. Por ordem de importância, são elas: seu marqueteiro, Luiz Gonzalez, e João Carlos Meirelles, coordenador da campanha. Ambos foram herdados da equipe de governo de Mário Covas, a principal referência política do candidato. "Foi Gonzalez quem convenceu Geraldo a não atacar Lula durante o horário político da televisão", diz um dos assessores do tucano. A proximidade de Alckmin com seu marqueteiro é motivo de ciúme entre caciques do PSDB. O presidente do partido, senador Tasso Jereissati – que desde o começo da campanha foi a favor de um embate frontal com Lula –, diz para quem quiser ouvir que não suporta Gonzalez. A implicância é tanta que Tasso já se recusou a ficar na mesma sala com o marqueteiro. O fazendeiro João Carlos Meirelles, secretário de Agricultura na administração Covas, tem hábitos conservadores: não se separa de suas bengalas (alterna o uso de mais de dez) e cultiva fartos bigodes brancos, cuidadosamente penteados para cima. Meirelles gosta de dizer que, dias antes de morrer, Covas lhe pediu para "tomar conta de Geraldinho".

Alckmin faz questão de separar o ambiente de trabalho do ambiente familiar. A maioria dos seus colegas de partido e funcionários do comitê político jamais estiveram em sua casa. "Nunca fui convidado para tomar um café que fosse no apartamento dele", conta um assessor que trabalhou com o tucano durante os quatro anos de seu governo em São Paulo. No domingo passado, dia do primeiro turno das eleições, Alckmin acompanhou a apuração das urnas em seu apartamento, na companhia apenas dos três filhos, seus respectivos namorados, e da mulher, Lu Alckmin – mantida invisível durante a campanha como decorrência do "escândalo dos 40 vestidos", os tais que ela ganhou do estilista Rogério Figueiredo, no que Alckmin considerou "um erro, fruto da inexperiência" da mulher. Enquanto a família, reunida na sala do apartamento do bairro do Morumbi, em São Paulo, seguia a apuração pelo computador, dois dos principais assessores da campanha do tucano acompanhavam o processo do lado de fora do edifício do candidato, juntamente com jornalistas e curiosos. Quando, no meio da noite, começou a chover, os assessores foram convidados a entrar na garagem do prédio, onde, diante de uma pequena TV, puderam acompanhar a vitória do chefe. Além de recatado, Alckmin é descrito como centralizador. "Ele sofre para delegar comandos", diz Meirelles. Na semana passada, ao saber que faltavam adesivos com sua foto em um dos comitês de São Paulo, pegou o telefone e reclamou pessoalmente da falha com o responsável pelo escritório. "Um trabalho que seria da secretária", diz Meirelles.

Alckmin aceita sem constrangimento os comentários de que é centralizador e "sistemático", como dizem seus assessores. Detesta apenas que o chamem de pão-duro, reputação conquistada em virtude de hábitos como o de comer em restaurantes por quilo e o de hospedar-se na casa de parentes quando está fora de São Paulo. Ao longo de toda a campanha eleitoral, que já dura cerca de quatro meses, usou apenas dois sapatos: um preto, que ele calça quando veste terno, e um marrom, quando visita favelas ou participa de caminhadas. "Ninguém nunca verá Geraldo jantando em restaurantes caros", diz um amigo do candidato. Durante o dia, Alckmin funciona à base de Coca-Cola – são quatro latinhas por dia –, bombons Sonho de Valsa e amendoim japonês. No domingo, quando o TSE anunciou sua entrada no segundo turno, a família Alckmin comemorou com alegria, mas sem brinde. Nos copos dos presentes, só havia água. Ele é mesmo bem diferente de Lula.

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